Thanos, o 'vilão ambientalista'
Antes, uma observação: esse texto, diferente dos outros no blog, tem muitos pontos de opinião e leitura mais pessoais. Vou me concentrar mais nas informações oferecidas pelos filmes, já que o universo dos quadrinhos guardam muitas diferenças. As referências e notas estarão discriminadas no fim da postagem. Esse texto contém spoilers (revelações sobre o enredo) de Vingadores: Guerra Infinita.
Você provavelmente está ansioso pela estreia dos Vingadores: Ultimato. Se não está, se vê cercado de pessoas que estão, pois certamente conhece muitas pessoas que contribuíram para a bilheteria bilionária na primeira parte deste importante filme para o Universo Cinematográfico da Marvel (UCM). Se você não viu e não faz ideia do que se trata, estamos falando de um universo construído por mais de 30 filmes que se comunicam através de referências, personagens e acontecimentos em comum. É algo, no mínimo, muito relevante para a cultura de massa atualmente. O filme Guerra Infinita traz, além de ação e lágrimas, uma discussão importante sobre os propósitos do “vilão” e é sobre isso que vou dar meu dedo de prosa.
O maior antagonista neste universo é um personagem chamado Thanos, cujo nome se inspira em Tânatos, personificação da morte na Mitologia Grega, responsável por arrebatar a vida dos mortais. No UCM, Thanos pertence à uma raça imortal, os Eternos, e nasce com o gene da “Síndrome Deviant” que faz, basicamente, que ele desenvolva a aparência do povo Deviant, que são inimigos dos Eternos. Ou seja, apesar de pertencer a um povo, sua aparência é do povo inimigo (1). Por isso, ele cresce rejeitado pela sua mãe, que tenta mata-lo, e por toda população do seu planeta. Além de imortal, o personagem é muito poderoso e habilidoso, mas assiste seu planeta natal perecer por uma escassez de recursos naturais. Mas essa não é o clímax da história do Thanos. Ele dedica seus esforços, portanto, a evitar que isso aconteça em mais lugares. Convém ressalvar que, nos quadrinhos, existe uma personagem que mudaria completamente o sentido desse post. Então reitero que me baseio majoritariamente na história apresentada pelo filme (2). Ele é o protagonista de Guerra Infinita e o filme conta a sua busca pelas seis Joias do Infinito, um meio necessário para concretizar o seu plano. Mas, que plano é esse, exatamente?

Toda a narrativa constrói Thanos como vilão. As músicas, as falas, as cores. Seu discurso, assim como o de seus seguidores, é de que assim como seu planeta, todo o Universo passa por uma crise de recursos e que para resolvê-la, é necessário dizimar metade (50%) da população de todo o universo. Por isso, segundo seu ideal, morrer pelas suas mãos é um sacrifício necessário para a sobrevivência do Universo e que isso deve ser encarado como uma honra. O maior objetivo dele é “deixar o Universo em equilíbrio”, para que ninguém mais passe fome. Seu ideal é tão altruísta, a priori, que o faria se encaixar naquela frase do Magneto (do X-Men), que dizia que "ser vilão nem sempre é querer o mal, mas ter um pensamento diferente dos que acham estar fazendo o bem". Por mais errado que possa estar, Thanos precisa acreditar no que está fazendo (4) e, realmente, tem o mérito de ter sido o único personagem em todo Universo da Marvel a propor uma solução para este problema real no Universo. É importante ressaltar que Thanos não se considera um vilão, afinal todo vilão é herói da sua própria história. Mas não é só por isso: ele vê sua missão como um ‘fardo’, como seu destino, como algo necessário a ser feito. Ele argumenta que ‘metade das vidas é um preço pequeno a se pagar’ pela sustentabilidade da vida no Universo e que a solução que propõe é a mais misericordiosa possível. Em uma conversa com sua ‘filha’, Gamora, ele diz que a salvou de morrer de fome no seu planeta. A ocasião na qual ele se refere ocorreu quando Thanos mata metade da população do planeta natal de Gamora, onde vivia com sua mãe biológica: “[...] seu planeta estava à beira de um colapso. Fui eu quem o impediu. Sabe o que aconteceu depois? As crianças que nasceram vivem de barriga cheia contemplando o céu”, diz o Titã. É a mais eficiente romantização do genocídio que eu, particularmente, já assisti.
Temos a impressão que ele está errado por uma razão simples: ele, de fato, está. Não moralmente, mas teoricamente falando. Ele pode ser forte e ter as joias, mas faltou uma leiturinha.

O que o Thanos consegue, ao juntar as 6 joias é o poder de acabar com metade da vida no universo com um simples estalar de dedos e, ao final do Guerra infinita, o vemos fazê-lo e sentar ao pôr-do-sol com uma expressão de serenidade e “missão cumprida”.

A teoria socioeconômica que está por trás do discurso de Thanos é a teoria malthusiana. Thomas Malthus (1766-1834) foi um economista britânico que elaborou uma previsão para o controle do aumento populacional. Sendo bem reducionista, Malthus previa que, na medida que a produção dos alimentos se dava em progressão aritmética (2, 4, 6, 8, 10...), o crescimento populacional se dava em progressão geométrica (2, 4, 8, 16, 32...). Segundo essa previsão, em determinado momento, a população ultrapassaria a quantidade de recursos disponíveis e isso significaria a morte de uma boa parcela da população pela fome. As ideias de Malthus, inclusive, inspiraram Charles Darwin na formulação de algumas ideias da Teoria da Evolução, especialmente no mecanismo de capacidade de suporte (k). O ‘k’ é justamente a quantidade de recursos disponíveis para suportar determinada população, então, a densidade populacional tende a oscilar ao redor desse limite de recursos, como se vê na imagem (Curva B). Alterações dessa capacidade de suporte é o que já está por traz de problemas já conhecidos na sociedade, como as ‘pragas agrícolas’ e a superpopulação humana (Curva A).

O Titã apela para o que Malthus chamou de estratégia positivada de controle populacional, que são estratégias que agem nos índices de mortalidade. Entretanto, elas não teriam nenhum efeito sobre a velocidade na qual a população cresce (natalidade). A tendência de crescimento de uma população animal caso não exista o K é sempre exponencial (chamamos isso de “potencial biótico", Curva A). Então, agindo apenas no vetor da mortalidade e não da natalidade, Thanos dá um tiro no pé. Isso por que ele passa o filme todo agindo como se esse fatídico estalar de dedos fosse a solução definitiva para todo esse problema de escassez. Mas na verdade, sem alterar o comportamento exponencial do potencial biótico, em pouco tempo esse problema voltaria (3). Ele viverá para se tornar escravo de uma solução que pensou ser definitiva, tendo que “estalar o dedo” repetidas vezes pela eternidade (já que ele é imortal). O argumento, portanto, é que sem alterar as taxas de natalidade o problema não seria resolvido. Thanos, por mais bem-intencionado que fosse, correria um grande risco ao ficar com essa manopla pela eternidade só para esse fim, tendo que se tornar o guardião dessas relíquias, coisa que ele inicialmente não queria.

Uma outra ressalva é, que o neomalthusianismo considera a tecnologia como um vetor importante do desenvolvimento. Nessa versão mais atual e revisada da teoria anterior, a tecnologia tem o poder de alterar a forma de produção de alimentos. Os modelos de produção também tendem a degradar o espaço natural de formas irreversíveis e gerar esgotamento de recursos. Desta forma, a escassez não é necessariamente um problema de espaço ou tecnologia produtiva, mas pelas diminuições dos ambientes salubres e realmente úteis à produção. Seria uma questão sobre a condição das terras produtivas disponíveis.
Além disso, havemos de convir que a fome é um problema político. A insegurança alimentar é influenciada por fatores de distribuição de alimentos, que é acompanhada e se sobrepõe a gráficos de desenvolvimento. Muitos dos países subdesenvolvidos de hoje são os explorados de séculos ou décadas atrás. Então, o problema da fome nem sempre é uma questão de produção ou de saúde ambiental dos ambientes produtivos, mas uma questão de acesso, distribuição, custo das necessidades básicas, estabilidade política e/ou saneamento básico. Nem sempre a fome existe por uma questão no setor produtivo.
Em suma, a solução proposta por Thanos é absolutamente paliativa e não tem efeito prático à médio-longo prazo. Esse ser supremo não age em nenhuma causa-raiz da fome nem da superpopulação. Talvez esse vazio teórico tenha sido propositalmente inserido para suavizar o vilão e tirar a potência do seu ato genocida. Falo isso por que um genocida bem embasado pode ser bem mais perigoso que um genocida teoricamente despropositado, mesmo que estejamos falando de ficção. Até onde sabemos, pela narrativa das telonas, Thanos é um ser rejeitado, preterido, que assistiu ao seu povo ser dizimado pela fome e aprendeu a linguagem da morte como perspectiva única. Talvez isso sirva melhor para explicar a sua limitação propositiva. O caso desse personagem nos mostra a importância de quebrar a parede da experiência pessoal para propor soluções gerais e democráticas. Thanos não consulta ninguém e não ouve as súplicas nem mesmo de sua filha, mostrando que atitudes genocidas e autoritárias andam juntas, independente do quão bem-intencionado for o plano de fundo.
Referências e Notas
(1) Excelente post da Raphaela Vieira no Eu, Astronauta. <http://www.euastronauta.com.br/2017/08/mcu-tudo-que-voce-precisa-saber-sobre.html>
(2) A personagem a que eu me refiro é a Morte, que é o grande amor de Thanos. Tudo que ele faz é para reverenciá-la e ser digno de sentar no trono ao seu lado. Como essa personagem não existe nos cinemas, as motivações de Thanos mudam e ele passa a ser, metaforicamente, a própria representação da morte, como citei no início do post.
(3) https://filmschoolrejects.com/three-problems-with-thanos-master-plan/
(4) Quadro em Branco, mais especificamente esse: https://www.youtube.com/watch?v=Vt0JVES9YPg