Por que só herdamos mitocôndrias da nossa mãe?
Atualizado: 30 de abr. de 2020

As mitocôndrias são organelas celulares extremamente importantes para o principal processo metabólico de uma célula aeróbica: produção de energia. A hipótese mais aceita para explicar sua origem se chama "Teoria da Endossimbiose", que supõe que estas organelas são derivadas de procariotos que foram englobados pelos ancestrais de células eucarióticas primitivas. Assim, independentemente do modo como a relação se iniciou, podemos ter uma ideia de como essa relação pode ter se tornado mutuamente benéfica. Por exemplo, em um mundo que se tornava cada vez mais aeróbio [por conta da Revolução do Oxigênio, que expliquei lá em Origem da Vida], um hospedeiro anaeróbico se beneficiaria de um endossimbionte capaz de produzir oxigênio. O hospedeiro poderia fornecer, em contrapartida, proteção química ao ambiente altamente instável e aos altos índices de radiação característicos da Terra à época. Ao longo do tempo, o hospedeiro e o endossimbionte se tornariam um único organismo, com partes inseparáveis. Hoje, como as conhecemos, célula eucariótica e mitocôndria, respectivamente.
Pois bem, uma das evidências que sustentam a teoria da endossimbiose é o DNA Mitocondrial (mtDNA), que é muito semelhante ao DNA procarioto, com apenas 37 genes tendo aparato metabólico para se autorreplicar e para sintetizar proteínas (foto abaixo). O processo de respiração celular, protagonizado pela atuação das mitocôndrias, têm participação de enzimas e proteínas sintetizadas a partir do DNA mitocondrial, evidenciando uma coparticipação tanto do mtDNA quanto do DNA nuclear. A mitocôndria é a única organela presente nas células animais que tem um DNA próprio. Pois bem, aqui jaz um fato: todas as mitocôndrias que você tem, em cada célula do seu corpo, foram herdadas da sua mãe. Esse fato sempre foi um mistério, cercado de diversas conjecturas, mas ultimamente alguns estudos têm encontrado evidências que sugerem uma explicação bem razoável para esse fenômeno. E ao que tudo indica, a chave está no momento da fecundação.


No processo de espermatogênese, isto é, quando os espermatozoides são formados, lá nos túbulos seminíferos dos testículos, a célula passa uma boa parte do seu processo de formação na fase de maturação. Nessa fase ela deixa de ter aquele formato redondinho clássico para ganhar o formato que conhecemos de espermatozoide. O objetivo dessa célula é muito específico: ela precisa entregar uma mensagem ao ovócito, e essa mensagem é o DNA paterno. Para isso, é necessário que seja uma célula leve e com alta motilidade e, para isso, ela perde praticamente todas as suas organelas [fica só o núcleo, mitocôndrias, um pedaço do complexo de Golgi e os centríolos] e ganha uma cauda. Só que essa cauda tem que bater com toda velocidade para que o espermatozoide alcance o ovócito e consiga penetrar na barreira química dessa célula, então, um dos processos de especialização, é a concentração imensa das mitocôndrias numa região próxima à cauda, chamada colo ou peça intermediária. A questão de se concentrarem mitocôndrias próximas à cauda é que elas são organelas produtoras de energia, justamente o que a cauda vai precisar para bater tão freneticamente.
Aí que está a chave da questão: o processo que as mitocôndrias realizam para produzir energia é a respiração celular, que utiliza glicose e oxigênio para gerar ATP. A função do Oxigênio (O2) nesse processo é ser aceptor final de elétrons na Cadeia Respiratória (se você não lembra disso, dá uma olhada lá na parte de Metabolismo Energético da Célula). Cada molécula de oxigênio recebe quatro elétrons, sendo reduzido para gerar 2 moléculas de água, em processo que pode ser resumido na seguinte reação: O2 + 4H+ > 2H2O. Entretanto, caso haja algum desvio de elétrons neste processo pode ser gerado uma redução monoelétrica do oxigênio, isto é, uma redução incompleta, levando a formação do que conhecemos como Radicais Livres. Estas espécies geralmente possuem um ou mais elétrons não pareados, o que as torna altamente instáveis e muito reativas (3).
É importante frisar que a formação destes compostos é um processo inevitável e natural e existem mecanismos que controlar os efeitos destas espécies reativas. Uma das principais maneiras de manejar estas espécies é através das reações de dismutação, onde se decompõem os radicais livres em produtos não radicalares. Ainda há outros mecanismos protagonizados por moléculas antioxidantes, encontrados em alimentos de origem vegetal que contenham Vitamina A, C, E, carotenos e polifenóis. O desbalanço do controle pode levar a doenças neurodegenerativas, cardiovasculares ou até cânceres, mas os radicais livres contêm algumas funções biológicas importantes como a sinalização celular, combate a microrganismos, regulação de processos pós-traducionais de proteínas, etc., portanto, o ideal é que haja um controle rigoroso das quantidades destas substâncias, uma vez que sua ausência compromete os importantes processos supracitados e seu excesso ameaça a integridade celular por meio da oxidação de biomoléculas, o que inevitavelmente acomete processos biológicos. E é nesse ponto que quero chegar. Como os espermatozóides possuem uma produção de energia constante e muito muito muito intensa, a produção de radicais livres é muito maior do que em células normais. Com isso, esses radicais tendem a reagir com o mtDNA e/ou com a membrana interna da mitocôndria, causando variados danos à sua estrutura e integridade.
Por conta disso, existe um maquinário proteolítico (isto é, dedicado a degradar proteínas) no citoplasma do ovócito. Essa célula possui um anticorpo específico que reconhece as mitocôndrias de origem paternas que entraram no ovócito no ato da fecundação e as degradam completamente no proteossoma 26S (2). Em suma, há uma razão evolutiva por que mitocôndrias paternas são degradadas: por produzirem energia de forma muito intensa, têm uma geração maior de radicais livres, logo estão muito mais propensas a carregar danos ao DNA e outras moléculas dentro da célula.
NOTA: A ideia para esse post veio ao escutar o PodCast Frontdaciência T10E15 - Mitocôndrias e DNA mitocondrial
REFERÊNCIAS
(1) Silva, D.S.B.S. 2015. Dissertação de Mestrado. Padrão de Metilação de DNA para fins forenteses: análise de células de sangue, sêmen e saliva e estudo de sensibilidade e especificidade. PUC-RS. Disponível em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/7606/1/000475352-Texto%2BCompleto-0.pdf
(2) Cadavid, M. 2010. Do the spermatic anoxeme and mitochondria enter the oocyte during the fertilization process? Actas Urol Esp vol.34 no.2 feb. Acesso em: http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0210-48062010000200002
(3)Princípios de Bioquímica – 3ª Edição (Lehninger)