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Homeostase não é sinônimo de equilíbrio

O que separa um organismo vivo de um organismo morto? Termodinamicamente: o equilíbrio. Mas não da forma que você está pensando. Sob um ponto de vista biofísico, o desequilíbrio é fundamental, pois é ele que significa que aquele sistema faz trocas de matéria e energia termodinamicamente favoráveis com o meio e, portanto, caracteriza um organismo vivo. Aquele que troca constantemente. Assim, um organismo morto é aquele sistema que alcançou um equilíbrio com o meio. Ou seja, se entendemos que a matéria sempre tende a passar de uma forma mais organizada para uma forma menos organizada, em um movimento entrópico, vemos que a energia livre para realização de trabalho tende sempre a diminuir, uma vez que quanto maior o nível de desordem de um sistema, maior será a quantidade de energia que não conseguiremos transformar em trabalho. Então, o máximo de entropia corresponde à nenhuma disponibilidade de energia livre. Isso é um organismo que morreu. Vendo por esse ponto, acho que já ficou claro que é complicado caracterizar homeostase como sinônimo de equilíbrio, uma vez que o desequilíbrio é uma característica fundamental da vida.

Aqui, nos dedicamos a pensar na vida como uma força local que se opõe à tendência universal dos sistemas aumentarem o grau de desordem. A homeostase é o mecanismo que garante essa força anti-entrópica, sendo a linha invisível que conecta todas as formas de vida através de um ímpeto involuntário por perseverar. Agora, se já dispensamos tão rapidamente a noção de que homeostase poderia ser sinônimo de equilíbrio, o que eu ainda pretendo no texto? Simples: descer mais um degrau e questionar até mesmo a definição da homeostase como um conjunto de processos reguladores do organismo, aquela largamente encontrada em materiais que visam simplificá-la.

O filósofo Bento de Spinoza (foto), holandês vivido no século 17, usa o termo conatus para construir noções de ética, dizendo que: "cada coisa, na medida do seu poder, esforça-se por perseverar no seu ser" e "o esforço através do qual cada coisa tende a perseverar no seu ser nada mais é do que a essência dessa coisa". No ponto de vista dos sistemas vivos, conatus pode se traduzir a partir de uma visão homeostática clássica. Isso pois, em um entendimento proposto inicialmente por Claude Bernard (foto), no século 19, a homeostase se trata de uma regulação positiva da vida, onde vemos um sistema vivo defendendo a própria existência. É base de uma vigilância química contínua para manter a integridade biológica de um organismo. Ou seja, seria a capacidade dos organismos vivos de manter seu funcionamento dentro de uma faixa de valores compatível com a sobrevivência e, damos exemplos como disso, a capacidade tamponante do sangue ou da regulação da temperatura do nosso corpo para entender como lutamos constantemente contra as variações impostas pelo meio, mantendo nosso corpo em certo 'estado estacionário'.

A ideia da homeostase surgiu com o fisiologista francês Claude Bernard, no final do século XIX. Bernard observou que os sistemas vivos precisavam manter numerosas variáveis ​​de seu meio interno dentro de faixas bastante estreitas para que a vida continuasse e o fez de maneira bastante natural (Bernard, 1878).

O problema é que o conceito tradicional de homeostase geralmente não abrange o fato de que existem formas de controle dos parâmetros do meio interno, além do fato de que não entende a homeostase também sob o ponto de vista da colaboração entre indivíduos para produzir sobrevivência ao menor custo possível. Temos evidências, por exemplo, que em colônias de bactérias, o grupo tende a rejeitar indivíduos que não estejam cooperando (Jousset et al., 2013); além disso, podemos pensar em insetos sociais, que possuem organizações complexas, onde constroem ninhos imensos, padrões de tráfego, sistemas de ventilação e remoção de resíduos, sem falar na guarda da rainha. Isso é realizado também a partir de uma espécie de inteligência coletiva que nada mais é do que um conjunto de ações não racionalizadas, guiadas pelo imperativo homeostático. Especificamente, o conceito tradicional de homeostase chama a atenção para essa forma não consciente de controle fisiológico que opera automaticamente, sem consciência ou deliberação por parte do organismo. Na verdade, buscar comida ou bebida quando as fontes de energia estão esgotadas pode ser alcançado pela maioria dos organismos sem qualquer intervenção intencional de sua parte. Se a comida ou bebida não estiver disponível no ambiente, os hormônios quebram automaticamente os açúcares armazenados em certas células e os distribuem para o sangue conforme necessário para compensar o déficit. Da mesma forma, quando o balanço hídrico está baixo, os rins automaticamente desaceleram seu funcionamento a fim de reduzir a diurese e manter o nível de hidratação, sem perdas desnecessárias (Kotas e Medzhitov, 2015).

Sentir e responder é uma habilidade onipresente em organismos vivos. Mas, por exemplo, em organismos que possuem sistemas nervosos capazes de elaborar consciência e sentimentos, o que é verdade em uma grande quantidade de animais, vemos que têm a possibilidade de interferir nos mecanismos homeostáticos pré-ajustados e elaborar inventos sociais e tecnológicos para expandir o controle homeostático também pra uma esfera sociocultural. Sabemos que nem todos os seres vivos são dotados de sentimentos, mas todos os seres vivos possuem os mecanismos reguladores que foram precursores dos sentimentos. Sentimentos são os representantes mentais da homeostase. Ou seja, nossos modos e meios estão alicerçados em formas de vida bem antigas, ligadas por um mesmo imperativo que governa tudo que é vivo no planeta: a homeostase. Mas, voltando ao ponto: sentimentos, emoções e racionalidade aumentam o alcance da homeostase básica, limitada por definição clássica à uma resposta automatizada do organismo à variações ambientais. Por exemplo, quando pensamos em um organismo terrestre que está se afogando, independente de consciência e emoções, o vemos se debater de forma enérgica, movendo seus músculos para direcionar seu corpo em direção à fonte mais próxima de ar. Esse movimento automático e irracional recebe um bônus de ser experimentada junto ao medo, em alguns indivíduos. Segundo Damásio, cada experiência de sentimento tem certo conteúdo, certa intensidade e certa valência. O conteúdo se refere ao que a sensação descreve (por exemplo, a aceleração do coração). O parâmetro de intensidade é autoexplicativo: os sentimentos podem ser fracos ou fortes. O parâmetro mais crítico, no entanto, é valência, positiva ou negativa. Dá aos sentimentos seu aspecto agradável (alegre, enérgico, entusiasmado, relaxado) ou desagradável (doloroso, doente, incômodo). O conjunto desses três parâmetros de sentimento indica para a mente do dono do organismo, de forma rápida, global e resumida, se o estado atual do organismo é geralmente propício para a continuidade da saúde ou mesmo o florescimento (bem-estar é um exemplo), ou se esse estado requer uma correção.

Por outro lado, a variedade consciente/sensação da regulação homeostática é muito mais propensa ao mau funcionamento do que a versão simples e automática. Isso porque oferece muita liberdade de operação. Permite que o dono do organismo faça escolhas não pré-programadas e essas escolhas podem, imediatamente ou ao longo prazo, estar em conflito ou até mesmo contrariar os objetivos da homeostática principal. Esse maquinário foi construído para cada espécie, ao longo do tempo evolutivo, por um lento processo de variação, seleção e ajuste de aptidão genômica. Igualmente importante, esse maquinário tem sido ajustado em cada indivíduo por experiências relacionadas a circunstâncias socioculturais. Em outras palavras, as respostas aos estados de sentimento homeostático não são influenciados apenas pela variável homeostática básica que levou ao sentimento em primeiro lugar; as respostas também são afetadas por uma série de fenômenos associados aos processos de afeto e sua sintonia de grupo individual ou cultural (Bisin e Verdier, 2001). Uma visão mais abrangente da homeostase nos dá a possibilidade de enxergá-la como um processo influenciado também por mecanismos imprecisos, além de não ser limitada ao mantimento de uma vida, mas à prosperidade, ou seja, à projeção da vida no futuro. Havemos de pensar que, sendo a evolução um processo constante e aditivo, em pouco tempo vamos reconhecer novas camadas de controle homeostático irracional que se sobreponham, em certo nível, aos sentimentos homeostáticos. Ou não.

“Imaginemos a extraordinária habilidade de um malabarista, que não pode interromper o processo de manter todas as bolas no ar sem deixar que alguma caia, e temos uma representação teatral da vulnerabilidade e do risco da vida. Pensemos [...] que está já a imaginar uma atuação ainda melhor” (Damasio, 2018)

REFERÊNCIAS

Bernard, C., 1878. Lec¸ ons sur les phénomènes de la vie communs aux animaux et aux végétaux. J.B. Baillière et fils, Paris


Bisin, A., Verdier, T., 2001. The economics of cultural transmission and the dynamics of preferences. J. Econ. Theory 97, 298–319.


Damasio, A. A estranha ordem das coisas: as origens biológicas dos sentimentos e da cultura. Editora Companhia das Letras, 2018.


Damasio, A., & Damasio, H. (2016). Exploring the concept of homeostasis and considering its implications for economics. Journal of Economic Behavior & Organization, 126, 125–129.


Jousset A, Eisenhauer N, Materne E, Scheu S., 2013. Evolutionary history predicts the stability of cooperation in microbial communities. Nat Commun, 4. 2573.


Kotas, M.E., Medzhitov, R., 2015. Homeostasis, inflammation, and disease susceptibility. Cell 160, 816–827


Lloyd, D., Aon, M. A., & Cortassa, S. 2001. Why Homeodynamics, Not Homeostasis? The Scientific World JOURNAL, 1, 133–145.


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