O cérebro humano é especial? Se sim ou se não: por quê?
Todos sabemos que os seres humanos possuem capacidades cerebrais bem notáveis. Eu, da minha casa, estou falando com vocês através de ferramentas tecnológicas que nós criamos. Também estaremos aqui refletindo conhecimentos detalhados que temos sobre nós e outras espécies animais e, sem dúvidas, somos os únicos com essa capacidade. Conseguimos desenvolver sistemas de comunicação complexos e temos habilidades bem notáveis de afetividade, aprendizagem e memória. Como um resultado disso tudo, construímos sociedades, política, arte e cultura. Tudo isso tem a ver, além de outros fatores, com a constituição encefálica. Entretanto, o encéfalo humano não é o maior e não é o que possui mais neurônios, em valores absolutos. O que o distingue dos outros, se é que existe algo? Esse é um post importante pra gente desfrutar um pouco do conhecimento científico dessa área, resumido no livro A Vantagem Humana, da Suzana Herculano Houzel. Leitura recomendadíssima para os entusiastas, aliás.
Uma primeira ressalva importante é uma breve atualização acerca da inteligência animal, por assim dizer. Antigamente, acreditava-se que os seres humanos possuíam características exclusivamente nossas. Mas, depois de muitos anos de estudo da área da cognição, hoje sabemos que as diferenças cognitivas entre humanos e outros animais são uma questão de grau. Ou seja, não se trata de diferenças qualitativas, mas de uma gradação quantitativa. Um exemplo: o uso de ferramentas pelos humanos é muito complexa, chegando ao passo de inventarmos ferramentas a partir de materiais artificiais, ou até mesmo utilizar ferramentas para construir outras ferramentas. Entretanto, em outros animais, como chimpanzés, gravetos são utilizados para catar cupins no subsolo. O uso de ferramentas é vista desde peixes até aves, em diversas espécies. Outro exemplo é a comunicação. Chimpanzés e gorilas tem limitações anatômicas para produzir sons. Entretanto, estudos demonstraram que são capazes de aprender a se comunicar utilizando linguagem de sinais [2]. Sobre a aprendizagem, o mesmo ocorre: chimpanzés conseguem aprender sequências hierárquicas, tendo um desempenho semelhante ao dos humanos em jogos do estilo do Genius [3]. Até conhecimento da auto-imagem em espelhos foi visto em alguns primatas, elefantes, golfinhos e corvídeos, e inferências acerca do estado mental de outros indivíduos foram percebidas em alguns primatas e corvídeos. Ou seja, todas as evidências anteriormente citadas reforçam que as diferenças cognitivas entre humanos e não-humanos são uma questão de grau.
Não é uma questão de tamanho do encéfalo, então?
Pelo menos treze espécies têm encéfalo de tamanho equivalente ou superior a nossa média, que é de 1,5 kg. O Elefante africano, por exemplo, têm um encéfalo com 5 kg (aprox. 3x o nosso). O da baleia, por exemplo, pesa cerca de 9 kg. Seis vezes maior que o nosso. Ela deveria ter mais capacidades cognitivas que nós, se esses dois fatores fossem correlacionados positivamente. E a não ser que elas sejam inteligentes o suficiente para não nos permitir saber de suas elevadas capacidades, a correlação não é tão verdadeira assim. Se sabemos, portanto, que encéfalos maiores não são necessariamente mais capazes cognitivamente, podemos concluir também que cérebros de tamanhos semelhantes não têm necessariamente habilidades cognitivas semelhantes. Simplesmente por que o tamanho do cérebro e as habilidades cognitivas não estão necessariamente relacionados. Podemos tomar como exemplo uma vaca e um chimpanzé. Ambos possuem encéfalos com aproximadamente a mesma massa, entretanto o segundo possui pelo menos duas vezes mais neurônios que a primeira. Igualar tamanho maior de encéfalo com maiores capacidades cognitivas pressupõe que todos os encéfalos são construídos do mesmo modo, a começar por uma relação semelhante entre o tamanho do encéfalo e o número de neurônios, o que vamos ver a seguir que não procede.
É a quantidade absoluta de neurônios, então?
Não. A quantidade absoluta não é o fator determinante, já que ela acompanha o tamanho cérebro em certa proporção e o cérebro humano não é o maior de todos. O encéfalo do elefante africano, que citamos anteriormente como tendo 3x o tamanho do nosso, possui 257 bilhões de neurônios, contra 'modestos' 86 bilhões do ser humano. Entretanto, o interessante é que incríveis 98% do encéfalo do elefante se localizam no cerebelo, deixando a ninharia de 5,6 bilhões de neurônios no córtex cerebral deles.
O que a autora do livro descobre, através do seu inovador método de contagem de neurônios, é que nem todos os encéfalos são produzidos do mesmo modo. Isto é, primatas e roedores, por exemplo, não possuem a mesma proporção de crescimento da relação massa encefálica e número de neurônios. Ou seja, os cérebros de diferentes grupos animais possuem diferentes regras de montagem. Isto significa dizer que na medida em que os encéfalos se tornam maiores, em animais maiores, os neurônios vão sendo adicionados em velocidades diferentes dependendo do grupo. Um exemplo: um pequeno primata e um pequeno roedor com massas cerebrais semelhantes não possuem grandes diferenças no número de neurônios no córtex cerebral. Entretanto, na medida que o córtex se torna maior, em roedores grandes (como a capivara) e em primatas de mesmo porte (como o chimpanzé), a distância entre o número de neurônios nas duas espécies é também aumentado. Como duas linhas que nascem em pontos parecidos mas vão se afastando conforme progridem (divergentes).
Ou seja, primatas têm uma vantagem na relação entre o número de neurônios e o tamanho do cérebro, que reside na forma econômica pelo qual neurônios são adicionados ao cérebro na medida em que esse órgão se torna maior entre as espécies. Isso é tão importante que vou tentar explicar de uma terceira forma: os primatas possuem muito mais neurônios no encéfalo do que mamíferos não-primatas de massa corporal semelhante devido à regras neuronais de proporcionalidade diferentes que se aplicam aos seus cérebros. Um primata com um encéfalo de 500g, por exemplo, tem mais neurônios do que um não-primata com o mesmo volume encefálico.
Outra coisa importante é que esse aumento no número de neurônios não é acompanhado de um aumento no tamanho médio desses neurônios, o que também faz com que os primatas rompam a proporcionalidade vista em grupos de não-primatas. Se o cérebro dos roedores seguissem as mesmas regras de proporcionalidade entre número de neurônios, tamanho do encéfalo e tamanho do corpo que é observada em primatas, um rato que tivesse a mesma quantidade de neurônios que um ser humano teria um encéfalo de mais de 30kg e um corpo que ultrapassaria as 80 toneladas. Essa comparação é útil para se ter dimensão do que foi falado no parágrafo anterior. Para as regras de proporcionalidade observada nos primatas, a relação entre o tamanho do nosso corpo, tamanho do nosso encéfalo e nosso número de neurônios é compatível com a forma como primatas montam cérebros: temos cerca de 86 bilhões de neurônios, num corpo que pesa 70kg e um encéfalo de 1,5kg (valores de média). O que nos leva à incrível conclusão de que somos primatas, não roedores. O cérebro humano é o maior cérebro entre os primatas, mas não passa de um cérebro primata aumentado, pois têm a mesma proporção de neurônios esperada para um cérebro desse tamanho.
O cérebro humano é notável, sim - mas acaba não sendo especial, pelo menos não em seu número de neurônios, em comparação com outros primatas, e também em seu tamanho, desde que grandes macacos sejam deixados de fora da comparação.

A questão dos grandes símios, como o gorila, é que apesar deles terem tantos neurônios quanto qualquer primata com o mesmo tamanho de encéfalo, a relação ente o tamanho do encéfalo e o tamanho do corpo é desproporcional: seu corpo é muito maior que o esperado. A maneira que tem sido usualmente utilizada para expressar esse fato é afirmar que o cérebro humano é maior que o esperado para o tamanho do corpo, nos colocando numa posição de ter alguma anomalia que fornecesse super poderes cognitivos, mas a verdade é que, dentro das regras de proporção, os seres humanos estão dentro do esperado. Quem está fora são os grandes símios. Então o argumento pode ser invertido: se os grandes símios são maiores que os humanos, por que NÃO têm encéfalos maiores do que nós? Não é um mero exercício semântico. Para a evolução, é importante saber qual característica precede qual. A razão pela qual seus corpos são muito maiores [ou os encéfalos são muito menores - proporcionalmente ao corpo] ainda não é inteiramente compreendida, mas está relacionado com o gasto energético muito grande para se ter um grande encéfalo e um grande corpo. São demandas conflitantes. trade-off em biologês. Traduzindo: teria que se optar por um e os grandes símios optaram pelo segundo.
Nosso cérebro se distingue pelo que, então?
O custo energético do nosso encéfalo é condizente com o esperado: cerca de 500kcal/dia. Mais ou menos um quarto da ingestão mínima calórica de 2000kcal/dia. Isso é bastante para um único órgão, mas condiz com o seu tamanho e número de neurônios. Independentemente do tamanho do cérebro, o custo energético médio é de 6 kCal por bilhão de neurônios por dia. E como já disse anteriormente: o tamanho do encéfalo e número de neurônios são condizentes com um primata do nosso porte, que está dentro do esperado diante das regras de proporcionalidade para a montagem de encéfalos do nosso grupo. Tá, então o que nos distingue?
Finalmente: os seres humanos possuem o maior número absoluto de neurônios no córtex cerebral dentre todas as espécies: 16 bilhões. O córtex cerebral da baleia-piloto é duas vezes maior que o nosso, mas possui 5x menos neurônios. Se formos ao maior córtex entre os cetáceos (grupo das baleias e golfinhos, notados por serem animais não-primatas com comportamentos muito complexos), vamos encontrar um córtex de 6,5 kg, mas com 10 bilhões de neurônios. Lembram do elefante africano? Com um cérebro com estonteantes 3x mais neurônios que o nosso? Ele tinha apenas metade do número de neurônios no córtex cerebral que nós. Ou seja, apesar de não ser o maior em número de neurônios absolutos nem em volume absoluto, o encéfalo humano possui o maior córtex cerebral em relação à massa encefálica total, além do maior número absoluto de neurônios no córtex cerebral. Isso não é prêmio de consolação: o número de neurônios no córtex cerebral é um bom indicativo de nível de cognição de um animal, já que é uma área importante para funções de aprendizado, pensamento abstrato e complexo.
A vantagem humana é possuir o maior número de neurônios no córtex cerebral do que qualquer espécie animal jamais conseguiu ter - e começa pela posse de um córtex que é construído à imagem de outros córtices de primatas.

Comparação entre um cérebro humano e de um cetáceo. Perceba como no golfinho, o cerebelo é proporcionalmente muito maior do que no ser humano. Ou seja, os seres humanos possuem o maior córtex cerebral (o que conhecemos somente como cérebro) em relação ao encéfalo total (que compreende córtex cerebral, tronco encefálico e cerebelo). 75% do nosso encéfalo é cérebro.
Mas... Por que?
Essa informação sobre o nosso córtex é importante, mas pouco vale ao nosso texto se não entendermos as causas evolutivas desta eventualidade. Como conseguimos concentrar tantos neurônios no córtex cerebral, sem fugir às proporções vistas em outros primatas?
Uma das coisa que pesam em relação ao nosso cérebro é a questão energética. Apesar de representar somente 2% da nossa massa corporal, ele consome 25% da nossa energia. E apesar de eu ter dito antes que isso ser o esperado para a nossa proporção de quantidade de neurônios, tamanho do cérebro e tamanho do corpo (e é mesmo), acaba sendo muito superior se compararmos com outros animais vertebrados, que tem um custo energético de, no máximo, 10% das necessidades calóricas diárias do corpo. Ou seja, somos especiais em relação ao custo energético do nosso cérebro em relação ao custo diário de energia do corpo. O maior da natureza. E isso acontece, claro, por termos mais neurônios entre todos os primatas e mais do que qualquer não-primata de mesmo porte que nós. Podemos ler isso de outra forma, fazendo uma pergunta diferente: como um animal consegue sustentar tantos neurônios no córtex cerebral como nós temos, consumindo da nossa energia? Onde conseguimos tanta energia para alimentar um cérebro tão caro?
Hoje em dia você pode facilmente ir à sua dispensa, pegar três biscoitos e ingerir em 2 minutos, 150 kcal. Só que se pensarmos no mundo natural, conseguir 150kcal não é tão fácil assim. E os animais tem que buscar o alimento, então temos que deduzir do número de calorias ganhas com a comida encontrada, aquela energia gasta para caçá-la ou coletá-la (que as vezes é uma porcentagem bem injusta para os coitados). Junto com a reprodução, o forrageio (busca por comida) são as atividades que mais gastam energia na vida cotidiana dos animais. São lutas diárias, incessantes, que nunca acabam.
A Suzana, portanto, aponta um fator determinante para que conseguíssemos sustentar cérebros com tantos neurônios, logo, tão caros. O principal fator teria sido o cozimento. Usando a matemática em seu favor, a autora calculou que um primata (para ser uma comparação justa) que come alimentos crus durante 8h/dia pode sustentar energeticamente um encéfalo de 53 bilhões de neurônios (o nosso tem 86, se você esqueceu). Mas, ele só poderia sustentar um corpo de 25 kg. Demandas conflitantes, lembra? A massa corporal consome muita energia e compete com o cérebro, outro grande consumidor. Para pesar mais que 25kg, ele teria que abrir mão do consumo energético de ter muitos neurônios, na seguinte proporção:
53B de Neurônios > 25kg de massa corporal
45B de Neurônios > 50kg de massa corporal
30B de Neurônios > 75kg de massa corporal
Ou seja, comendo 8h/dia, um primata para ter o nosso peso, conseguiria no máximo ter um terço dos neurônios que temos. Para sustentarmos um corpo de 70kg, com 86B de neurônios, teríamos que comer durante mais de 9h ininterruptas. Basicamente todo o tempo que ficamos acordados. Ou seja, inviável, já que teríamos que separar tempo para outras coisas, como a reprodução e relações sociais. Se éramos inviáveis comendo como primatas, talvez o que tenha nos tornado viáveis tenha residido em uma das duas alternativas: ou passamos a obter alimentos diferentes, mais energéticos ou obter mais energia através das mesmas fontes alimentícias. O que ocorreu com os nossos ancestrais, por acaso da evolução, há 1,5 milhões de anos, foi o segundo. Mas como? O que ocorreu por volta dessa data foi o controle do fogo e cozimento de alimentos. Alimentos cozidos são "pré-digeridos" pelo fogo, tornando maior a energia obtida por alimento; além disso, são mais fáceis de mastigar, mais fáceis de digerir, tornando menor a energia dispendida por esse sistema (que é imensa) para processar todo esse alimento. Uma limitação passa a ser uma vantagem.

Gráfico retirado da palestra da autora no TED [4]
Conseguindo obter mais energia por alimento e, de quebra, gastando menos tempo procurando e ingerindo-os, o cérebro dos nossos ancestrais cresceram e ganharam volume cerebral e neurônios de forma muito acelerada. Do jeito especial que só os primatas fazem, como expliquei lá no início. Isso vem acompanhado de comportamentos mais complexos, evidente. Ou seja, é muito provável que o evento do cozimento tenha possibilitado aos nossos ancestrais e, depois, a nós, administrarmos um córtex cerebral grande, com um número cada vez maior de neurônios, com um custo energético surpreendente, o que pode ter sido um dos fatores para que passássemos de comedores de alimentos crus à inventores da geladeira e frequentadores assíduos de gôndolas de supermercados. Hoje, podemos obter toda caloria necessária para manter nosso cérebro funcionando durante o dia todo com uma única ida à geladeira. Mas isso não nos torna, especiais ou superpoderosos. Nos lembra que, na verdade, somos produto de alguns dos milhões de acasos da evolução. Simples e humildemente.
REFERÊNCIAS
[1] Herculano-Houzel, Suzana. A vantagem humana: Como nosso cérebro se tornou superpoderoso. Editora Companhia das Letras, 2017.
[2] Richard J S Wise, Language systems in normal and aphasic human subjects: functional imaging studies and inferences from animal studies,British Medical Bulletin, Volume 65, Issue 1, March 2003, Pages 95–119,https://doi.org/10.1093/bmb/65.1.95
[3] Inoue & Matsuzawa, Working memory of numerals in chimpanzees, Volume 17, Issue 23, 4 December 2007, Pages R1004-R1005, www.sciencedirect.com/science/article/pii/S096098220702088X
[4] Palestra no TED de Suzana Herculano Houzel: www.ted.com/talks/suzana_herculano_houzel_what_is_so_special_about_the_human_brain