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O que a ciência diz sobre a Hidroxicloroquina?

Atualizado: 25 de mai. de 2020


A Hidroxicloroquina e a Cloroquina já vêm sendo distribuídas em alguns municípios. No Estado do Pará há distribuição em Marituba, Tucumã, Curuçá e Paragomina, por exemplo. A foto abaixo é de um kit que está sendo entregue pela prefeitura de Tucumã (PA) [1]. O secretário de saúde da cidade disse que "os medicamentos são concedidos conforme a prescrição médica, o médico avalia os sintomas e as vezes não espera o paciente testar positivo, já que o teste rápido positiva apenas no 8° dia de sintomas . A partir da prescrição médica o farmacêutico monta o Kit e encaminha ao paciente. A entrega dos medicamentos é feita na casa do paciente por um motorista devidamente treinado com uso de EPIs.” O Prefeito da cidade, Adelar Pelegrini (PMDB) já editou pelo menos quatro decretos entre março e abril onde flexibiliza o funcionamento do comércio em geral e prestadores de serviços não essenciais no município. O ministério Público Federal inclusive realizou uma ação no município [2], para que a prefeitura amplie medidas para isolamento social, sob o risco grave de saúde da população.


Eu sei que esse é um tema que não-surpreendentemente está ideologizado. Se você é "a favor" do medicamento, você é fã do atual presidente, Jair Bolsonaro; se você é contra, você é comunista e quer destruir o Brasil. E o pior: você não precisa necessariamente ler nada pra estar contra ou a favor do remédio: só tratar ciência como política e política como religião, crendo acriticamente em um dos dois lados. Esse post não visa conversão, mas informação sobre os últimos estudos que têm sido feitos acerca da COVID-19 e potenciais medicamentos para seu combate.

Outro aviso se torna importante: assim como ficou claro no post "Algumas pessoas pegam Corona Vírus de novo. Por quê?", como estamos vivendo tempos atípicos, a ciência tem pressa. A pressa pode ser boa ou ruim, dependendo do ponto de vista, mas uma coisa é certa: não pode produzir muito mais do que estudos preliminares, com uma capacidade limitada, até certo ponto, de descrever a realidade. Um estudo sobre a efetividade de uma droga ou a aprovação de uma vacina normalmente leva meses e, não raro, anos para ser concluído. Com a pandemia, que foi declarada como tal pela OMS há pouco mais de 2 meses (em 11 de março de 2020 [3]) o ritmo dos testes tem sido acelerado à milésima potência e já temos algumas indicações sobre a efetividade de medicamentos, que é o que vou trazer aqui. Vamos por ordem cronológica e vocês podem acessar os estudos originais clicando nas referências, que também são links.

Um estudo coordenada pelo Dr. Gautret em Marsella, na França, foi publicado dia 20 de março de 2020 e obteve 100% de liberação do vírus em 70% dos pacientes observados, a partir da administração de hidroxicloroquina + azitromicina. A anulação da carga viral utilizando-se somente hidroxicloroquina foi de 57,1% e sem nenhum antiviral foi de 12,5% [4]. Após os resultados desse estudo clínico houve um interesse considerável pelo uso da hidroxicloroquina no tratamento da doença de COVID-19 e o Ministério da Saúde francês recentemente permitiu o uso de hidroxicloroquina no tratamento da doença de COVID-19. Foi basicamente "onde tudo começou".


Entretanto, um segundo estudo publicado em 29 de março, também realizado na França [5], adianta uma controvérsia: "Não há evidência de rápida depuração antiviral ou benefício clínico com a combinação de hidroxicloroquina e azitromicina em pacientes com infecção grave por COVID-19". Os autores replicaram a metodologia do estudo feito em Marsella, com a mesma posologia das drogas, mas considerando pacientes com condições pré-existentes, em estado grave, e alertam:

Esses resultados virológicos contrastam com os relatados por Gautret, e lançou dúvidas sobre a forte eficácia antiviral dessa combinação. Além disso, em seu relatório, também relataram um óbito e três transferências para a UTI entre os 26 pacientes que receberam hidroxicloroquina, também sublinhando os resultados clínicos adversos com essa combinação. Além disso, um estudo recente da China em indivíduos com COVID-19, não encontrou diferença na taxa de depuração virológica em 7 pacientes com ou sem hidroxicloroquina durante 5 dias, além de nenhuma diferença nos resultados clínicos (duração da hospitalização, normalização da temperatura, progressão radiológica)[6]. Estes resultados são consistentes com a falta de benefício virológico ou clínico da cloroquina em várias infecções virais, onde foram avaliadas quanto ao tratamento ou profilaxia, às vezes com um efeito deletério na replicação viral.

Dia 5 de maio, outro estudo francês avaliou a eficácia da hidroxicloroquina em 181 pacientes internados com pneumonia por COVID-19, que necessitavam de oxigênio. As idades variavam de 18 a 80 anos e nenhum paciente estava na UTI [7]. Os médicos avaliaram a evolução do quadro dos pacientes, ou seja, se os sintomas iam se agravando ou melhorando nos dois grupos (aquele com e aquele sem tratamento com hidroxicloroquina). Além de não ter diferença estatisticamente relevante entre a taxa de sobrevida, o tempo de extubamento e o alívio dos sintomas respiratórios entre os dois grupos, nota-se que oito pacientes no grupo que recebeu a hidroxicloroquina (10%) sofreram modificações eletrocardiográficas que exigiram a interrupção do tratamento, e concluem:

A hidroxicloroquina recebeu atenção mundial como um tratamento potencial para a covid-19 por causa de resultados positivos de pequenos estudos. No entanto, os resultados deste estudo não suportam seu uso em pacientes internados no hospital com COVID-19 que necessitam de oxigênio.

No dia 6 de maio, um outro ensaio clínico com 150 pacientes (148 em estado médio e 2 em estado severo) realizado na China chegou em conclusão parecida [8]. Dividiram-se dois grupos: 75 pacientes recebendo o tratamento com hidroxicloroquina e outros 75 recebendo o atendimento padrão dos hospitais chineses. Após terem comparado "taxas de conversão negativas", ou seja, o número de pessoas que se curaram completamente e testaram negativo para o vírus depois de um mês, observaram que 85,4% das pessoas que tomavam hidroxicloroquina apresentaram resultado negativo após quatro semanas, juntamente com 81,3% das pessoas sem a droga - um efeito que não é significativo, estatisticamente falando. Ou seja, essa diferença não pode ser corretamente atribuída ao tratamento, por ser muito pequena e estar entre uma variação casual, dentro do esperado, para o grupo que se testou. Os dados obtidos mostraram, portanto, que a administração de hidroxicloroquina não resultou em uma probabilidade significativamente maior de conversão negativa do que o padrão de atendimento isolado em pacientes internados no hospital com COVID-19 leve à moderada, principalmente persistente. Além disso, os eventos adversos foram maiores nos receptores de hidroxicloroquina do que nos não receptores.


Num outro estudo, dessa vez realizado em Nova Iorque e publicado 7 de maio, um grande número de pacientes foi analisado (o maior até então): 1376 pessoas. Os médicos-cientistas analisaram a associação entre uso de hidroxicloroquina e intubação ou morte em um grande centro médico na cidade de Nova York. Lembram, no texto, que até o momento nenhum grande ensaio clínico controlado havia testado a eficácia dessa medicação e que os dados disponíveis são provenientes de pequenos estudos que não foram controlados ou com pouca potência para detectar efeitos clínicos significativos. "O relatório original da hidroxicloroquina como tratamento para o Covid-19 descreveu 26 pacientes que foram tratados em um estudo aberto de grupo único que envolveu controles contemporâneos, mas não randomizados, em hospitais da França", lembram. Após um mês de coleta e análise de dados, concluíram que a administração de hidroxicloroquina não foi associada a um risco reduzido ou aumentado de intubação ou morte. Ou seja, não provocou efeito estatisticamente relevante [9].


No Brasil, um estudo conduzido em manaus (AM) com 81 pacientes. Alguns foram alocados para uma alta dosagem de cloroquina (CQ), ou seja, 600mg de CQ duas vezes ao dia por 10 dias e outros para baixa dosagem, ou seja, 450mg duas vezes ao dia no dia 1 e uma vez ao dia por 4 dias. Seus resultados mostram que uma dosagem maior não deve ser recomendada para pacientes graves com COVID-19 por causa de seus riscos potenciais à segurança, especialmente quando tomados concomitantemente com azitromicina e oseltamivir, outros medicamentos que vêm sendo combinados com a cloroquina e hidroxicloroquina [10]. Segundo o Jornal Estadão, os pesquisadores chegaram a ser acusados por internautas, nas redes sociais, de "usar pacientes como cobaias e de terem aplicado uma dosagem letal para causar má-impressão sobre o medicamento no tratamento contra a doença causada pelo novo coronavírus. Em entrevista exclusiva ao Estado, o infectologista Marcus Lacerda, da Fiocruz, líder do grupo, preferiu não comentar as ameaças que ele e outros pesquisadores sofrerem. Ele explicou que estudos anteriores de laboratório haviam mostrado que a cloroquina só mata o vírus em concentrações muito altas". [11]


Neil Schluger, Professor na Epidemiology, Environmental Health Sciences and Medicine da Columbia University Medical Center [12], disse em entrevista à revista americana Time: “Não achamos que, nesse ponto, com a totalidade das evidências, seja razoável dar essa droga rotineiramente aos pacientes. Não vemos o racional em fazer isso”, disse o doutor. “Os médicos veem pacientes que estão morrendo em taxas inacreditáveis e querem fazer algo para ajudar. Mas eu acho que a história da medicina nos mostra que alguns palpites estão certos e muitos, muitos outros estão errados”, afirmou Schluger [13].


No que você não pode acreditar? Em robôs, fake news e declarações estapafúrdias sem a menor comprovação. Procure sempre fontes confiáveis de informação, estudos científicos e verifique as informações que você achar. Você pode ter ouvido relatos esparsos de uma pessoa que ministrou a Hidroxicloroquina sozinha ou combinada com azitromicina e se curou, etc. Ou pode ter ouvido o contrário também, de alguém que ingeriu e piorou ou faleceu. Mas não vamos confundir as relações de causalidade aí: hoje, no Brasil, sem nenhum tratamento específico padronizado, 94% das pessoas que têm a doença ficam curadas. Somente 6% morrem [14]. Se uma pessoa pega COVID-19, ela tem 94% de chance de se curar, mesmo sem uso de nenhum anti-viral específico. Como vamos atribuir uma cura a um medicamento específico se as chances sem o ele já eram tão altas? Não dá pra atribuir. É a mesma coisa de dizer que 95% das vezes que eu pego resfriado, eu fico curada; aí na próxima vez que eu pegar resfriado, eu coloco um boné amarelo na cabeça, fico curada e atribuo a cura ao uso do boné. Então, pra você atribuir uma cura a um medicamento ou tratamento específico, precisa fazer um teste controlado, randomizado, com um grupo controle e um grupo afetado, com um número de pessoas estatisticamente satisfatório e onde aí você terá como comparar a efetividade do tratamento na redução da mortalidade. Isso já foi feito nos estudos que apresentei nesse post e a indicação é de inalteração com e sem o tratamento. Sem efeito prático. A ciência médica não trabalha com a lógica casuística, então não se pode afirmar a efetividade de um tratamento através de um caso. Principalmente sem compará-los com um grupo que não recebeu o tratamento.


Esse debate também não se trata de considerar um caso extremo, onde uma pessoa está em óbito iminente e poderia optar por receber a hidroxicloroquina ou não, sendo que se optar por receber, sua vida poderá ser salva e tudo mais. Se trata de um debate de política pública de saúde, onde estamos debatendo a adoção dessa medicação como protocolo nacional. Isso deve vir acompanhado de uma bagagem científica que suporte a administração da medicação, que não é o que estamos vendo acontecer, segundo a tendência que eu descrevi nesse post. A irresponsabilidade na ideologização desse debate pode ser assim chamada por vir carregada de consequências. A ANVISA, por exemplo, mudou a classificação da hidroxicloroquina e cloroquina para "produto controlado", para evitar o desabastecimento para pessoas que realmente necessitam, como pacientes com malária, lúpus e artrite reumatoide [15].


Por que investir milhões para subsidiar a distribuição de uma medicação que já se mostrou ineficaz no tratamento dessa doença em vez de investir nas Universidades Públicas, que realizam pesquisa científica no nosso país, pra que ele se mostre constantemente no quadro de estudos científicos pioneiros como a China, França e EUA? Por que não reforçar medidas que também são importantes para o controle da doença, como estímulo à higiene pessoal, isolamento social, importação de respiradores, construção de hospitais de campanha, distribuição de máscaras e produtos de higiene, assistência social e financeira, higienização de espaços públicos, reforço de canais digitais de atendimento para serviços públicos, entre outros? Por que?

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