Por que enzimas são tão específicas?
Atualizado: 12 de jan. de 2021
Hoje eu vou tentar trazer a compreensão sobre a especificidade das enzimas nos organismos vivos. Esse é o segundo de uma série de três posts sobre enzimas. O anterior é "Por que as enzimas aceleram reações?" e o seguinte é "Como enzimas são reguladas?".
Com exceção de um pequeno número de ácidos nucleicos com capacidade catalítica, todas as enzimas são proteínas. São, portanto, constituídas de aminoácidos, assim como qualquer outra proteína. Entretanto, a maioria das proteínas possuem, além da sua cadeia de aminoácidos, estruturas de outras classes de moléculas, que são denominados grupos prostéticos. Isso significa que são compostas pelos mesmos monômeros que qualquer proteína: aminoácidos, mas nem toda enzima tem constituição totalmente proteica, já que algumas contém grupos de outras classes químicas associadas à sua estrutura. Algumas das características que todas as enzimas têm em comum, muito importantes pro entendimento desse tema, são:
(1) Apresentar alta atividade catalítica (aceleram de 106 até 1012 vezes)
(2) Ser altamente especifica em relação aos substratos e produtos relacionadas a ela;
(3) Não ser consumida ou alterada ao participar da catálise;
(4) Ter atividade regulada geneticamente ou por condições metabólicas
Em relação à primeira e à terceira, já abordamos no primeiro post da série. Nesse, vamos explorar mais o segundo ponto. Mas antes, acho importante que entendamos a função biológica dessa alta especificidade. Todos os processos metabólicos no corpo são mediados por enzimas. No post anterior você já pôde compreender a sua importância para a realização dos processos bioquímicos de um organismo: elas reduzem a energia de ativação necessária para a reação ocorrer. Isso é interessante pois praticamente implica que as reações mediadas por enzimas só podem ocorrer na presença delas. A consequência natural disso é que para o organismo, agir na regulação da enzima significa agir na regulação do processo. A especificidade da enzima é o que garante que essa última frase seja sempre verdadeira. Vou dar um exemplo prático: A enzima que catalisa a primeira reação da glicólise (Hexoquinase), é regulada alostericamente pelo produto da própria reação. Isto é, ela catalisa a transformação da glicose em Glicose 6-fosfato. Quando começa a se acumular Glicose 6-fosfato, esse excedente se liga à enzima hexocinase, modulando sua ação negativamente, ou seja, interrompendo temporariamente sua ação catalítica. O que o organismo está dizendo é "já tem muito produto, pode parar de gera-lo por enquanto". Além disso, sabemos que apesar da presença de uma enzima poder desencadear múltiplas ações metabólicas, ela quase sempre terá apenas um substrato, conseguindo diferenciá-los de substratos quimicamente semelhantes em um grau surpreendente(*). Da mesma forma, aquele substrato só sofrerá a reação mediante aquela enzima e mais nenhuma. Ou seja, super monogâmicos e específicos, esses casalzinho "enzima-substrato". Pra facilitar, um exemplo: A Lactase é uma enzima que hidrolisa a Lactose, gerando Glicose e Galactose. Essa é a única reação que a lactase vai mediar e a lactose só será hidrolisada em glicose e galactose se a lactase o fizer. Nenhuma outra enzima é capaz de fazê-lo. E, claro, isso facilita a regulação por parte do organismo.
(*) Existem enzimas capazes de se ligar a substratos quimicamente semelhantes, catalisando consequentemente várias reações. É o que chamamos de especificidade relativa.

Agora, vamos ver um pouco as razões bioquímicas dessa alta especificidade. Como vocês sabem, as enzimas são proteínas e, por isso, são polímeros de aminoácidos. O que as enzimas têm de diferente das demais proteínas é uma região capaz de realizar ligações com certas moléculas específicas. Essa região é chamada de sítio ativo. A sua especificidade se realiza a partir de aminoácidos com cadeias laterais específicas que se ligam ao substrato através de ligações fracas não-covalente (ex: ligações iônicas, ligações de hidrogênio, interações hidrofóbicas, etc). A energia de ligação é a principal fonte de energia livre utilizada pelas enzimas para a diminuição da energia de ativação das reações. Ou seja, tá tudo interligado. A energia que a enzima utiliza para realizar a reação está relacionada com as ligações que ela vai fazendo com aquele que é o seu substrato específico.

Muito do poder catalítico das enzimas provém basicamente da energia livre liberada na formação de muitas ligações fracas e interações entre a enzima e seu substrato. Essa energia de ligação contribui tanto para a especificidade como também para a catálise.
Normalmente, o sítio ativo é formado por apenas alguns poucos aminoácidos da enzima, e o resto da molécula proteica funciona como suporte que determina a configuração do sítio ativo. A especificidade da enzima, portanto, é atribuída à complementaridade entre a forma do sítio ativo e a forma do substrato e as suas interações químicas. Os aminoácidos mais participativos nestas ligações costumam ser o Glutamato, Aspartato (negativamente carregados) Lisina, Histidina e Serina (Positivamente carregados). Deixa dar uma resumida pra ver se você entendeu bem: Em geral, ao se ligar à enzima através de ligações fracas, a enzima sofre uma mudança de conformação, como vimos no post anterior. Essa mudança, induz ainda mais interações fracas com o substrato, necessárias para fornecer energia suficiente para a reação acontecer. Se o substrato não for compatível quimicamente com a enzima a ponto de não possibilitar essas ligações fracas, a reação não acontece. Por isso, somente substratos muito específicos são compatíveis com enzimas específicas. Esse ajuste fino é um dos principais fatores que tornam possível o casamento tão perfeito entre enzima e substrato, o que sustenta boa parte do sistema de regulação dos processos metabólicos nos organismos vivos.