
Você está em: PECUÁRIA, AMBIENTE E SOCIEDADE
Por que uma seção como essa?
Ô Vivian, por que você está fazendo uma seção sobre vegetarianismo num site sobre Biologia? Primeiramente, por ser um tema que fala com a nossa sensibilidade para com as outras formas de vida, nossa forma de lidar com o planeta Terra, nossas escolhas sobre como explorar a terra e a água, nossa saúde e respeito com as populações originárias do nosso país. Segundamente, por que eu sou vegetariana e acho importante quebrar ideias equivocadas sobre esse assunto, bem como ser uma fonte de informações bem referenciadas, científicas e fatos que muitas vezes são omitidos por estruturas de poder no nosso país.
Questões Ambientais
Essa questão é tão ampla que eu terei que subdividi-la. Vamos começar com os dados para se ter uma dimensão do tamanho do agronegócio brasileiro. Segundo o IBGE, a população brasileira possui 209,3 milhões de pessoas atualmente. Os últimos dados sobre a quantidade de indivíduos animais na indústria agropecuária, retirados da Pesquisa da Pecuária Municipal (IBGE) apontam que temos 214,9 milhões de cabeças de gado, onde a quase 60% da produção se localiza no Centro-Norte do país (34,5% no Centro e 22,6% na região Norte). A Região norte, que abriga o bioma amazônico, teve expansão de 28,0% no rebanho bovino nos últimos dez anos. Dentre os dez municípios que mais expandiram seus rebanhos em números absolutos nos últimos dez anos, sete encontravam-se no Pará. E dos 20 com os maiores efetivos de bovinos em 2017, 11 estavam no Centro-Oeste e nove no Norte. São Félix do Xingu (PA), líder no efetivo nacional em 2017, teve crescimento do rebanho de 23,6% nos últimos dez anos. Além do gado, temos também 1,4 bilhões de galináceos, 41,1 milhões de suínos e pescamos cerca de meio bilhão de toneladas de peixe por ano (1). Esses números, claro, não são apenas para alimentar a população brasileira, já que a média de consumo de carne por habitante é de 38,6 kg/ano. O Brasil é um dos maiores, senão o maior exportador de carne bovina do mundo. Ou seja, o que nós produzimos abastece o consumo interno do país e exportamos mais de 2 milhões de toneladas todos os anos.
Segundo o Natural Capital Risk Exposure of the Financial Sector in Brazil, capital natural é o termo usado para descrever o valor dos bens e serviços que os ecossistemas fornecem como água, terra e regulamentação climática. O capital natural é essencial para o crescimento econômico e, no entanto, é amplamente desvalorizado pelos mercados. Isso significa que as empresas não pagam pelos impactos de suas atividades comerciais, resultando em poluição e esgotamento de recursos, o que depois se reverte em dificuldades em sustentar a produção da forma que está.
Bem, já deu pra perceber que o business é grande e lucrativo, né? Entretanto, ele traz lucro para uma parcela específica da opulação (aquele 1%, como diria Wesley Safadão), enquanto o prejuízo ambiental é dividido pelo país e pelo planeta. Um relatório recente feito pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) e pela Agência Alemã para a Cooperação Internacional mostrou que a pecuária é o setor da economia brasileira com os maiores custos em termos de perda de capital natural: para cada R$ 1 milhão de receita do setor, R$ 22 milhões são perdidos devido a perda de capital natural e outros danos ambientais (2). A questão, portanto, é que essa cadeia produtiva vem acompanhada de uma série de impactos ambientais que tem que entrar na conta para entendermos a realidade completa. As propagandas (óbvio, por serem propagandas) tendem a tratar o assunto pela metade, apelando para o "desenvolvimento econômico" e para os produtos interessantes, que "todo mundo" consome. Esse apelo ao consumismo trazendo a noção de que sem esses produtos no seu dia-a-dia, sua vida seria muito pior, e o responsável por colocá-los na sua mesa é a agroindústria. O que está embutido nesse argumento é que a forma como a agroindústria faz as coisas no Brasil é a melhor e mais correta ambientalmente falando.


1) O desmatamento
Conforme já tratamos em outras seções, sabemos que o agronegócio é um dos maiores desmatadores do Brasil. O desmatamento é a primeira causa óbvia para tornar possível uma atividade de criação de gado, por dois motivos: primeiro, a criação de gado no brasil é essencialmente extensiva (ou seja, os gados soltos nas fazendas, ocupando um grande espaço); segundo, que é necessário plantar cereais e leguminosas para compor a ração desses animais e isso também ocupa espaço. Já viu aquelas plantações de soja de perder de vista? Cerca de 78% dela será usada para fabricar ração animal. Portanto, a proteína animal (a carne) é aquela que tem o maior custo de uso da terra.
Como é possível ver no mapa ao lado, as regiões desmatadas (em rosa) estão no redor dos locais onde foram instalados frigoríficos, principalmente no eixo centro-norte do país. Isso revela uma associação que já era conhecida há muito no Brasil: a expansão das áreas de pecuária está diretamente relacionado com o recuo de matas nativas.
Isso diz que, de forma prática, que a carne no prato significa perda de biodiversidade, degradação do solo e mudança na dinâmica de chuvas de toda área equatorial do planeta, já que a Amazônia influencia nisso (como já vimos em Pauta Ambiental).
Para Margulis (2003) (3), não seriam rodovias (ou estradas) por si próprias que levariam ao desmatamento, mas sim a viabilidade financeira da pecuária. Não que ela seja altamente rentável. Pelo contrário, a pecuária na Amazônia é pouco rentável e sua persistência só se explica pelos subsídios ou créditos do governo que sustentam ganhos especulativos, como diz o autor no Relatório ao Banco Mundial. Ou seja, podemos inferir que os créditos e subsídios à essa cadeia produtiva, dadas pelo nosso governo, são praticamente um patrocínio para o desmatamento. Dois estudos indicam que o efeito perverso do crédito está ocorrendo. Na Transamazônica pequenos produtores em assentamentos rurais desmataram mais do que aqueles fora dos assentamentos e sem crédito (Wood et al., 2003) (4). Outro estudo mais abrangente mostrou que a taxa de desmatamento em 343 assentamentos na Amazônia foi quatro vezes maior do que fora deles entre a data de criação e 2004 (Brandão Jr. e Souza Jr., 2006) (5). Os assentados são elegíveis para créditos com os maiores subsídios.
A pecuária bovina é a atividade mais fortemente correlacionada com desmatamento para os municípios da Amazônia (6), sendo responsável por quase 70% do total, com atividades diretas e indiretas (seja para formação de pasto, seja pra plantação de soja, milho ou para abrir estradas e ferrovias). O mesmo vale para o Cerrado, que também tem sido devastado para esses fins.


2) Emissões de Metano
Uma recente tecnologia visa fazer com os ruminantes o mesmo que se faz em lixões. Tanto o gado quanto os lixões emitem metano e esse metano pode ser captado para gerar energia. Só que extrair de um lixão é bem menos invasivo do que extrair do sistema digestivo de um animal ainda vivo. Paola Rueda explica a problemática relacionada a isso no site da ONG World Animal Protection. Leia!
O metano é um dos piores gases estufa da Terra, com capacidade cerca de 28 vezes maior de reter calor, se comparado com o Gás Carbônico, comumente apontado como vilão para o aquecimento global (e com razão). O metano é menos falado por ser menos presente na nossa atmosfera e por ter uma menor meia-vida, mas o seu poder de retenção de calor é um fator que não pode ser ignorado quando falamos de efeito estufa e aquecimento global. Então, apesar de responder por apenas 4% dos gases-estufa, ele causa 20% da elevação de temperatura, segundo estimativa do Global Carbon Project.
Esse gás é produzido em diversos momentos, na dinâmica da Terra. Ele pode ser expelido por vulcões, nas suas erupções; também é visto como produto de decomposição da matéria morta (essencialmente a decomposição anaeróbica), o que na atividade humana é resultado de grandes acúmulos de lixo (lixões), hidroelétricas que não foram desmatadas antes da construção, pelas monoculturas de arroz e também pela atividade pecuária. Não sei se é de conhecimento geral, mas os bois, cabras, búfalos e ovelhas são chamados de ruminantes justamente pelo nome de uma das porções do seu sistema digestivo chamada de rúmen. Essa região possui uma altíssima densidade e diversidade populacional de microrganismos que vivem em simbiose com o animal e são capazes de sintetizar diversas substâncias (inclusive dão a capacidade de digerir celulose, que o boi não tem naturalmente). Alguns desses microrganismos são metanogênicos, produzindo o gás CH4 como resultado de seus metabolismos. Como esse gás não é utilizado pelo animal, a maior parte dele é removida durante o processo de eructação (conhecido por você como arroto) que é essencial para a manutenção da saúde gástrica do animal.
Aí você pensa: tá, mas será que o arroto de um boi vai afetar a quantidade de metano no planeta? Só pode ser exagero, né? Bem, você se lembra do tamanho do rebanho bovino que eu falei lá em cima? Aquele é só o do Brasil. Não contabilizei países que tem rebanhos enormes também, como os EUA, China e Índia. Segundo o Painel Intergovernamental em Mudanças Climáticas, o IPCC, ruminantes emitem 28% do metano produzido no mundo. Isso quer dizer que 1/3 do metano emitido por atividades humanas, no planeta, está diretamente ligado à pecuária (6).


3) Uso da Água
Você já deve ter visto alguma propaganda do governo sobre economizar água. Principalmente durante estiagem, se você mora no nordeste, ou sobre a "crise hídrica" de São Paulo, se você mora no sudeste. O Vídeo ao lado é da Companhia de Águas de São Paulo (SABESP) durante a crise hídrica que acometeu o estado há alguns anos. A campanha se chamava "cada gota conta" e focava na conscientização pública sobre economizar água, já que o nível dos mananciais da SABESP estavam abaixo do limite crítico. Essas propagandas normalmente focam em dois pontos: o primeiro é que a causa da falta de água é natural, pela simples diminuição das chuvas; o segundo é que a solução para melhorar essa situação parte do consumo doméstico. Banhos mais curtos, acúmulo de louça, escovar os dentes com um copo e não com a torneira, entre outros. Entretanto, sabemos que o uso doméstico (ou seja, a água que abastece todas as casas do Brasil) é de apenas 10%.
Então onde estão sendo gastos os outros 90%? Basicamente 72% é utilizado na agropecuária e os outros 18% na indústria e mineração. Dentro da agropecuária, a água é utilizada para matar a sede do gado e para irrigar as culturas vegetais (maior parte da soja, por exemplo, é usada para alimentar o gado, como já falei anteriormente). Na indústria, ela é usada para resfriar e lavar máquinas, lavar a fábrica, diluir componentes químicos, lavar tecidos, entre outros. Você imaginaria, por exemplo, que o seu smartphone necessitou de quase mil litros de água para ser produzido? E um quilo de carne bovina, você sabe quanto consome para ser produzido?
Somando o que é gasto em todas as fases da cadeia produtiva que envolve a criação, alimentação, água e processamento industrial da carne bovina, um quilo dela gasta mais de dezessete mil litros de água. Isso é o equivalente ao consumo mensal do chuveiro de uma casa com 3 pessoas (considerei que cada um tome dois banhos de 15 minutos por dia). Então, basicamente, se uma casa de três pessoas consumir um quilo a menos de carne no mês (nem é tanto esforço assim, seria algo como não comer carne em um ou dois dias DO MÊS) equivale a mesma economia do que ninguém tomar banho durante o mês todo. Entendeu a gravidade do problema? Isso sem contar derivados de carne ou do leite, como o queijo ou a manteiga. Sabe aquele pacotão de 1kg de Qualy? Demandou 18 mil litros de água para ficar pronto.

4) Produção de Lixo
Segundo o Estadão, replicando dados oficiais do , o planeta gera 30 bilhões de toneladas de resíduos sólidos por ano. O lixo urbano (esse que você produz na sua casa) contribui com apenas 2,5% do total. Claro que é importante geri-lo com atenção, entretanto, o enredo é parecido com o do quadro acima. A atividade humana que mais produz lixo é a pecuária: quase 40% o montante, o que simboliza 12 bilhões de toneladas por ano de ossadas, carcaças, embalagens e resíduos mecânicos. Depois, temos a mineração, com praticamente a mesma quantidade da produção de lixo (o que se chama de rejeito de mineração, exatamente aquilo que varreu centenas de vidas das cidades de Mariana e Brumadinho, ambas em Minas Gerais. A agricultura, necessária para produzir alimento para as atividades pecuaristas, produz 19% do lixo no mundo, anualmente, o que corresponde a 6 bilhões de toneladas de lixo.
Como sabemos, a má-gestão do lixo gera uma gama imensa de doenças, desequilíbrios ambientais, emissão de gases estufa e gases tóxicos, além de ter o poder de poluir rios, mares e aquíferos (água subterrânea). Já escrevi sobre isso lá na seção de Pauta Ambiental.

Grilagem e Populações Originárias
A grilagem consiste na apropriação ilegal das terras públicas por grandes proprietários de Terra, com base em documentos falsos. Isso tem consequências, por exemplo, para os beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), uma vez que esse processo subtrai grandes áreas que poderiam ser designadas à política agrícola. A grilagem promove a acumulação de terras em torno de poucas pessoas, ou seja, acumulação de terra, latifúndio, e traz consigo a violência no campo, o assassinato de lideranças indígenas e/ou ambientalistas, a expulsão de pequenos posseiros que aguardam de boa fé a regularização fundiária, o banimento de comunidades inteiras de indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais. Além disso, a grilagem também é uma grande responsável pelo desmatamento ilegal de mata nativa, visto a impulsiona a extração ilegal de madeira nos locais que são grilados, já que muitas dessas áreas são roubadas do poder público para conversão em áreas de pastagens para gado (7). "Apesar de ser uma prática antiga, que se arrasta desde séculos passados, a grilagem é um fenômeno social atual e recorrente na realidade brasileira que busca assegurar o acesso à terra e aos recursos florestais. Somente no início da década passada, foi divulgado o primeiro retrato da grilagem no País, revelando um número preocupante de apropriação indevida de terras públicas, através de um trabalho feito pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do INCRA, e pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Grilagem (CPI da Grilagem). Dentre as irregularidades mais praticadas no estado, estavam aquelas relacionadas às fraudes nos títulos expedidos, processos de aquisição de terras, demarcação de áreas, localização do imóvel e registros imobiliários, contrariando a Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos). Nesse trabalho, foram cancelados cerca de 48,5 milhões de hectares". Portanto, a dimensão dessa prática criminosa é realmente assustadora. Para se ter noção, 48,5 milhões de hectares é cerca de duas vezes o tamanho do estado de São Paulo.
Ainda segundo Nogueira e Lima (2019), o processo violento atinge diretamente povos indígenas, populações tradicionais, comunidades quilombolas, trabalhadores rurais, posseiros, assentados e um conjunto de comunidades camponesas que vêm sofrendo há décadas uma violenta expulsão através da grilagem para expansão da agropecuária, além de causar um desequilíbrio na distribuição terras. Segundo o senso agropecuário do IBGE, apenas 1% dos agricultores controla 46% das propriedades rurais do país , como 5.175.489 estabelecimentos agropecuários, que utilizam quase 400 milhões de hectares, equivalente 36,76% de todo o território brasileiro.
O modo como são feitas as coisas no Brasil, quando o assunto é produção de alimentos, tem muitas causas e efeitos, mas sem dúvidas, o mercado agropecuário é um responsável por uma boa parcela dessas porcentagens, já que o mercado de carne e de soja no Brasil, tanto para o mercado interno quanto para exportação são muito expressivos. É o que levou veículos de mídia internacionais a cunhar o Brasil de "fazenda do mundo", como a manchete do jornal francês “Le Monde”, ao lado.



Consumo de Carne e Saúde
Em breve, conteúdo de qualidade
Dados e Referências
1- INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Rio de Janeiro: IBGE, mar. 2009. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/22648-ppm-2017-rebanho-bovino-predomina-no-centro-oeste-e-mato-grosso-lidera-entre-os-estados
2 - Natural Capital Risk Exposure of the Financial Sector in Brazil. Relatório do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) e pela Agência Alemã para a Cooperação Internacionalhttps://cebds.org/wp-content/uploads/2015/07/GIZ-Natural-Capital-Risk-Exposure.pdf
3 - MARGULIS, S. Causas do desmatamento da Amazônia brasileira. Brasília: Banco Mundial, 2003. http://siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166-1185895645304/4044168-1185895685298/010CausasDesmatamentoAmazoniaBrasileira.pdf
4- Wood, C.; Walker, R.; Toni, F. 2003. Os efeitos da posse da terra sobre o uso do solo e investimentos entre pequenos agricultores na Amazônia brasileira. p. 427-436. In: Tourrand, J. F e Veiga, J. B. Viabilidade de sistemas agropecuários na agricultura familiar da Amazônia. Embrapa Amazônia Oriental. Belém – PA. 468 p.
5- Brandão Jr. A.; Souza Jr. C. 2006. Desmatamento nos assentamentos de reforma agrária na Amazônia. O estado da Amazônia. Belém: Imazon. 4 p. Disponível em: http://www.imazon.org.br.
6- RIVERO, Sérgio et al . Pecuária e desmatamento: uma análise das principais causas diretas do desmatamento na Amazônia. Nova econ., Belo Horizonte, v.19, n.1, p.41-66, Apr. 2009. www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-63512009000100003&lng=en&nrm=iso
7- NOGUEIRA JUNIOR, Bianor Saraiva; LIMA, Neuton Alves de. Combatendo a grilagem no Amazonas através dos projetos de desenvolvimento sustentável. 2019. Disponível em: http://periodicos.uea.edu.br/index.php/novahileia/article/view/1261/800
8-
9-
10-